Bases para começar
Compartir o mundo, esse é o segredo simples de uma nova consciência ética e cidadã, de dimensões planetárias. Precisamos compartir entre nós e com gerações futuras aquilo que generosamente recebemos, como dom, da própria natureza.
Precisamos compartir, também, o que produzimos, respeitando a vida e o meio ambiente a partir do génio colectivo – ou alguém tem dúvida de que o conhecimento humano é algo essencialmente colectivo, produzido na interacção e troca que a linguagem e a inteligência nos permitem? Compartir significa se solidarizar e ser responsável. Compartir quer dizer reconhecer nos outros os mesmos direitos que queremos para nós mesmos.
É fundamental recolocar no centro os bens comuns, aqueles que são condição de vida para todos os seres humanos: em primeiro lugar a água, o ar que respiramos, o clima, a biodiversidade, os enormes recursos que a natureza contém, enfim, a biosfera como um sistema único em sua diversidade. Mas também são fundamentais os bens comuns criados ao longo da história humana: as línguas, o canto e a música, a arte e a cultura em geral, assim como os conhecimentos, a ciência e as técnicas, as filosofias.
A preservação, o fortalecimento e o uso responsável desses bens é condição de vida em sociedade e de uma relação saudável, justa e sustentável com a natureza. Uma tarefa urgente e incontornável é desprivatizar e desmercantilizar os bens comuns – hoje, uma das maiores ameaças produzidas pelo modelo de desenvolvimento que temos e, portanto, um dos factores determinantes do aquecimento global.
Precisamos potenciar as conquistas da democracia como método de transformação e como modus operandide uma sociedade baseada na justiça social e ambiental. Ampliar o espaço da política sobre a economia, o espaço do público sobre o privado, do poder cidadão sobre o poder do dinheiro e das empresas. A democracia é essencial para reposicionar a questão ambiental como uma questão de justiça social, desta e das futuras gerações.
Quando falamos em sociedades sustentáveis, em vez de desenvolvimento sustentável, estamos sobrepondo o direito colectivo cidadão – de ter comida, roupa, casa, saúde, cultura e felicidade – sobre o direito individual e privado de acumular sem limites. A democracia traz o direito e a responsabilidade cidadã de definir o tipo de justiça social e ambiental que a sociedade pode garantir para todos os seus integrantes.
Novamente, o problema está no modelo dominante, mas a possibilidade de mudança está nas mãos da cidadania ativa. Mais do que nos desiludir pelo que fazem nossos representantes e os responsáveis pela formulação e gestão das políticas, precisamos exercer nossa capacidade de constituintes do poder político e dos governos.
São mobilizações vindas do seio da sociedade em acção que levam a mudanças. Diante da mídia, das poderosas empresas, de suas estruturas que a tudo parecem dominar, precisamos inventar modos cidadãos de controle social e público que as constranjam, inibam e obriguem a mudar estratégias e práticas. Afinal, empresa nenhuma resiste a um boicote cidadão.
Trilhas a transformar
Precisamos pôr em questão a medida de valor da riqueza comumente usada. Afinal, o que é a riqueza? O Produto Interno Bruto (PIB) é uma degradação, uma elegia à destruição ambiental e social que a mercantilização de tudo provoca. Exclui quem não está no mercado e o que não se faz com o propósito de vender. Não considera geração de valor o trabalho doméstico, o cuidado com a própria reprodução da vida humana. Trata-se de uma medida do que se ganha e não do que a humanidade perde. No PIB está embutido muito da destruição ambiental e da injustiça social que vemos.
Já existem contestações sobre a medida da riqueza e a hegemonia do PIB. O bem viveraponta outra base para se considerar a riqueza como índices de felicidade humana ou de bem-estar bruto. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), proposto pelo Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD), vai no sentido da contestação da hegemonia do carácter económico e financeiro do PIB, mas ainda não é uma ruptura, pois o próprio PIB per capitaé ainda um de seus componentes. Além do mais, o IDH ignora o impacto sobre os bens comuns.
Qualquer nova medida de valor, capaz de apontar um mundo mais igualitário e diverso, com justiça social e ambiental, deve levar em conta a interacção entre os seres humanos, a comunidade, vizinhos(as) e amigos(as). Também deve considerar a experiência mais directa com a natureza. Indispensável é sentir-se bem, a realização pessoal e colectiva, a criação e a possibilidade de participar para além da acumulação de bens e patrimónios materiais.
Um segundo movimento a registrar aqui é o da economia solidária. Trata-se, fundamentalmente, de modos de organização social e económica, baseados na cooperação e responsabilidade social, que visam servir à vida e não à acumulação. O compartir vem junto com o repartir no ato mesmo de constituir um empreendimento económico solidário, em qualquer sector de actividade humana. Está aí um princípio revolucionário, na prática, de construção de vida e sociedade sustentáveis.
No centro das iniciativas e da rede de economia solidária está a busca do reequilíbrio dos sistemas bioecológico, socioeconómico e do técnico e científico, na base de qualquer actividade humana de produção de bens e serviços. Ainda cabe registrar aqui toda uma nova tendência de reciclar e conservar os bens, mais que produzir novos a se jogar fora. São raízes de uma nova economia, seja na relação entre os seres humanos com a natureza, seja na relação entre eles mesmos ao produzir, repartir e consumir os bens.
Deve-se inventar formas de produzir riquezas menos materializadas. A economia da informação e do conhecimento, hoje com grande impacto nas nossas vidas, pode ir nesse sentido se não for presa dos grandes conglomerados capitalistas. Produzir mais riqueza, mais felicidade, sem usar destrutivamente a natureza, é o que mais precisamos.
Um outro aspecto fundamental é a relocalização e a reterritorialização do poder e das economias. Elas partem do reconhecimento do bem comum maior, o planeta, a biosfera, a biodiversidade, com o ar, os oceanos e o clima. Mas reconhecem também as potencialidades e os limites diversos de cada canto do planeta, de cada sociedade humana aí ancorada. Todos e todas dependemos uns dos outros, devemos buscar o possível e decidir por nós mesmos(as) segundo as possibilidades do lugar que ocupamos na crosta terrestre.
Ninguém tem o direito de nos tirar a capacidade de decidir por nós mesmos(as), impondo soluções de fora. Claro que nós, também, não temos o direito de decidir ignorando as consequências sobre todos os outros.
Ninguém tem o direito de nos tirar a capacidade de decidir por nós mesmos(as), impondo soluções de fora. Claro que nós, também, não temos o direito de decidir ignorando as consequências sobre todos os outros.
Localizar e territorializar é nos reencontrarmos com nós mesmos e com o meio ambiente. Precisamos de formas de organização que nos permitam internalizar tudo o que pode ser internalizado, produzindo aqui para consumir aqui, decidindo aqui o que concerne aos cidadãos e às cidadãs daqui, tendo a cultura e a identidade que nos convêm.
Tudo o que diz respeito ao bem comum colectivo maior, tudo o que precisamos e não temos, tudo o que temos a mais e outros têm pouco, tudo isso deve ser organizado e decidido em instância maior, seja nacional, regional ou mundial.
O que não pode acontecer é a imposição de formas de exploração e uso dos recursos como até aqui, sempre determinados de forma colonial, de fora, seja dos centros económicos mundiais, seja dos polos industriais no interior dos países, sem considerar as necessidades dos grupos humanos locais envolvidos.
Para além de conclusões
Está evidente nesse percurso que faço o esforço de libertação. Sim, libertação de dogmas, de ideais e valores, de estruturas de pensar e agir. Radicalmente comprometidos com a democracia como estratégia de mudança social, devemos tomar o desafio de uma nova agenda para o mundo que nos rodeia como se fosse a agenda da própria cidadania